Diz
um velho ditado: “Dos fracos não reza a história.” Pelo contrário, são
ignorados, esquecidos, marginalizados, oprimidos, escravizados, odiados e
subestimados, como se de inúteis de tratassem. No entanto, são estes mesmos que
enriquecem a muitos e são a causa da glória de outros, tendo a ingratidão como
recompensa. A nossa história está repleta de grandes personagens que
concretizaram enormes feitos: travaram colossais batalhas, realizaram colossais
conquistas, traçaram rotas marítimas, povoaram ilhas, deram novos mundos ao
mundo, enfim, um pequeno país com uma grande história escrita com o sangue de
muitos fracos que, por força das circunstâncias, não tinham opção de escolha.
Em suma, os grandes deste mundo, os fortes e os “todo-poderosos” só conseguiram
fazer alguma coisa que ficasse na história dominando, subjugando e servindo-se
dos mais fracos, e ainda hoje se continua a escrevê-la nos mesmos moldes.
Há
muito tempo atrás um carpinteiro de Nazaré também fez história, dividiu a
história e deu um novo rumo à história de muitos fracos, pois ele não esmagará
a cana quebrada e não apagará o morrão que fumega até que faça triunfar o
juízo. Este homem tem inspirado poetas e escritores, compositores, pintores e
até cineastas, como é o caso de Mel Gibson que, a meu ver, foi muito feliz na
produção do filme “A Paixão de Cristo”, trazendo para os ecrãs todos os
pormenores das últimas doze horas da vida de Jesus. Impressionou muitos que
estavam habituados a contemplar a cruz vazia, bem adornada, e que quase se
esqueciam de que um dia ela estivera manchada com sangue inocente. A outros
provocou revolta por acharem que foi exibida demasiada violência gratuita. É
compreensível que seja chocante presenciar de forma condensada tudo aquilo que
o Filho de Deus teve que passar ao longo de várias horas. Mas é um facto, o ser
humano é de memória curta e propenso a esquecer-se facilmente que o novo rumo
da sua história teve um preço muito alto.
O
apóstolo S. Paulo, no início da sua epístola aos Coríntios, demonstra de forma
bem clara a sua preocupação: “Os judeus pedem sinal e os gregos buscam
sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os
judeus, e loucura para os gregos (…) nada me propus saber, entre vós, senão a
Jesus Cristo e este crucificado (1 Coríntios 1:22, 23; 2:2). Já ouvi várias
opiniões a respeito do sofrimento de Cristo. Há quem ache que a crucificação de
Jesus foi idêntica a tantas outras que eram comuns na época e que o seu maior
sofrimento foi espiritual e não físico, porque se condoía muito por causa do
pecado da humanidade. Outros dizem que o que Jesus mais temia era o abandono do
Pai, pelo facto de haver exclamado: “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” Lamento muito que os Cristãos pensem assim, limitando-se a olhar
apenas para algumas situações, não analisando bem de perto as palavras e as
circunstâncias em que tudo se passou. É verdade, Jesus não foi o único a ser
crucificado, muitos o foram antes e depois dele, mas por se tratar de uma
condenação fraudulenta todo o seu processo penal não teve o mesmo desenrolar
dos demais condenados, como se pode facilmente depreender ao lermos o que se
passou desde o momento em que foi preso até ao suspiro final.
O
próprio Jesus disse aos seus discípulos: “Convém ir a Jerusalém e padecer muito
dos anciãos, e dos principais dos sacerdotes e dos escribas e ser morto”
(Mateus 16:21). Na verdade Jesus sofreu muito por causa do pecado, mas no seu
corpo, como nos relata o profeta: “Como pasmaram muitos à vista dele, pois o
seu parecer estava tão desfigurado, mais do que o de outro qualquer, e olhando
nós para ele, nenhuma beleza víamos, para que o desejássemos. Era desprezado, e
o mais indigno entre os homens, homem de dores, e como um de quem os homens
escondem o rosto, era desprezado, e não fizemos dele caso algum. Mas ele foi
ferido pelas nossas transgressões, e moído pelas nossas iniquidades; o castigo
que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados.”
(Isaías 53). Quanto ao brado de Jesus na cruz, através do qual alguns afirmam
que ele foi abandonado pelo Pai por ter assumido sobre si o pecado de toda a
humanidade, o qual Deus não pode suportar, questiono-me em que momento isso
terá acontecido. Durante todo o seu ministério, Jesus relacionou-se com o Pai
da forma mais íntima e natural, sem qualquer tipo de impedimento e fico com a
ideia de que a partir do momento em que subiu à cruz essa intimidade se tenha
tornado mais profunda. É da cruz que ele pede: “Pai, perdoa-lhes porque não
sabem o que fazem.” É da cruz que ele diz ao malfeitor, confiante: “Hoje
estarás comigo no paraíso.” É da cruz que ele exclama bem alto: “Está
consumado”, e: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu Espírito.” A única diferença
que encontro no Cristo crucificado é que antes ele se retirava e passava longos
momentos a sós com o Pai em oração, pois não era como os hipócritas que
gostavam de orar nas esquinas das ruas para serem vistos. Agora, Jesus estava
limitado e exposto à vergonha. O seu único conforto era saber que o Pai estava
suficientemente perto para o ouvir.
No
livro de Génesis temos um relato similar. Deus pediu a Abraão que oferecesse o
seu filho Isaac em holocausto numa montanha da terra de Moriá e, “dirigindo-se
para lá, edificou Abraão um altar e pôs em ordem a lenha e amarrou seu filho
Isaac, e deitou-o sobre o altar, em cima da lenha. E, ao tomar o cutelo para
imolar o seu filho, um anjo bradou do céu: Não faças mal ao moço, porquanto
agora sei que temes a Deus” (Génesis 22). Comparemos com a seguinte escritura: “Deus
amou o mundo de tal maneira que Deus o seu Filho unigénito, para que todo
aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.” (João 3:16). Abraão
ofereceu o seu filho a Deus e Deus ofereceu o seu Filho ao mundo. Assim como
Abraão acompanhou Isaac até ao momento do holocausto, também creio que o Pai de
Jesus não procedeu de outra forma, pois ambos eram cúmplices no plano da
redenção da humanidade. Quando Jesus clamou: “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?”, o desabafo não foi de Filho para Pai, mas sim de homem para
Deus. O homem, semente da mulher, conforme Génesis 3:15, o varão de dores, que
no auge do suplício sentiu-se só, não pela ausência de Deus, mas por causa do
juízo que este fez cair sobre ele.
Tenho
boas razões para acreditar que Deus jamais pensou em abandonar o seu Filho,
fosse qual fosse a circunstância. Quando, por três vezes, Jesus orou: “Meu Pai,
se é possível passa de mim este cálice”, a sua alma estava cheia de tristeza
até à morte, a angústia apoderou-se dele e, embora Deus não pudesse atender à
sua oração, enviou um anjo para o confortar. Não gosto de classificar o
sofrimento de Jesus. Ele era humano e, como tal, sofreu em todos os aspetos. No
espírito sofreu por antecipação o cálice que estava por vir, ao ponto de
agonizar de forma tal que o seu suor tornou-se em grandes gotas de sangue que
corriam até ao chão. Isto só demonstra que o que estava pela frente era algo
infernal.
Por
mais que ofensas nos magoem e certas palavras nos firam, a dor física é a que
mais tememos e evitamos, e Jesus não foi exceção, simplesmente não teve como
evitá-la. O Filho de Deus foi o único que conseguiu fazer história sem derramar
sangue alheio. Enalteceu o fraco, humilhou o forte, cumpriu todo o propósito
divino e desfez, no seu corpo, todas as obras do diabo.
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