Certo dia fez Jesus um amistoso convite,
dizendo: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos
aliviarei.” Mt 11:28
Apesar da aparente abrangência, o convite é
muito restrito e selectivo. Quando Jesus usa o termo, todos, ele apenas
refere-se aos cansados e oprimidos e não a todo o género humano, pois existe
sempre aquela casta de fariseus, que confiam em si mesmos, crendo que são
justos, que não se cansam de exibir suas virtudes e dons, têm tanto para dar que
de Deus nada precisam receber, no entanto desprezam os outros.
É certo que o meigo Mestre, em seu discurso
não está a referir-se ao natural cansaço de um árduo dia de trabalho, nem da
opressão normal das circunstâncias da vida. O Filho de Deus encarnou-se para
levar sobre si as nossas dores e iniquidades, libertar-nos do pecado e do
diabo, vencer a morte e o inferno, ser a voz dos que vivem na sombra e a todos
dar a vida eterna.
Jesus tinha uma sensibilidade, toda ela
especial para lidar com os que viviam na sombra, vítimas de preconceito e
escrúpulo, eram marginalizados e considerados imundos. Para estes o dócil
Senhor sempre tinha uma palavra amiga, confortadora e portadora de vida. Nunca
foi seu propósito, esmagar a cana quebrada nem apagar o pavio que fumega, antes
pelo contrário, quando alguém lhe clamava, ele perguntava: “Que queres que te
faça?” quando abordado por um leproso disse-lhe: “eu quero que fiques limpo.”
Ao ver um paralítico em dificuldade perguntou-lhe: “queres ficar são?” Depois
de tudo isto o que mais me impressiona é quando Jesus caminhando apertado pela
multidão, ele consegue distinguir o delicado toque de uma mulher que há muito
tempo sofria de um fluxo de sangue.
Os habitantes de sombra apenas conhecem um
slogan favorito: “Jesus, Mestre, tem misericórdia de nós.” Lc 17:13.
Não vou alongar-me com o meu discurso, pois
desta vez tenho em mãos, um texto de autor anónimo, cujo conteúdo pode parecer
revoltoso contra Deus, não se escandalizem, há revolta sim, mas contra
aqueles que acham que amam a Deus e que no entanto aborrecem o seu próximo, o
mesmo pode também muito bem representar o clamor de todos quantos vivem na
sombra em nossos dias, vítimas de preconceitos e religiosidade aparente,
baseada apenas em rituais domingueiros.
“Perdoem-me se estas palavras se vão tornar, de certa
forma ofensivas, mas preocupa-me o facto de haverem pessoas mais ocupadas em
apontar os pecados dos outros, esquecendo-se que Deus irá pedir contas dos seus
pecados e não do que elas sabem do pecado dos outros. Mas, já que se usa da
liberdade para expressar opiniões via redes sociais, porque se está nesse
direito, eu também vou expor a minha.
Eu não vou nomear uma lista de pecados abomináveis perante Deus e,
especialmente, perante Cristãos que se dizem conhecedores da Bíblia. Aliás,
acho que os Cristãos se demonstram muito mais constrangidos com certos
“pecados” que o próprio Deus, o único que pode julgar tais questões. Além do
mais, é irrelevante nomear pecados, até porque, perante Deus, não há pecado
maior ou menor, pelo que só gastarei “o meu latim” se tentar ordená-los. E nem
me vou dar ao trabalho de rebater o que quer que seja com versículos bíblicos.
Basta ver que o próprio Jesus foi tentado com a Palavra de Deus. E, já que o
Diabo também usa a Palavra para conseguir o que quer, eu vou aproveitar para
dar voz à minha humanidade e Jesus, melhor que ninguém, para compreender,
porque Ele já esteve no meu lugar.
Fico com a sensação que o Cristianismo tem-se tornado como aquele que se
diz ser humilde mas, que ao dizê-lo, deixa de o ser, visto que, quem é humilde,
não tem necessidade de clamá-lo aos quatro ventos.
Há coisas que não dizem respeito à curiosidade alheia. Eu não admito, por
exemplo, que opinem sobre a minha conta bancária. Aliás, nem o meu melhor amigo
me diz o dinheiro que tem em conta, e eu a ele! Assim como eu espero não vir a
descobrir que há pessoas interessadas em bisbilhotar o que faço ou deixo de
fazer entre quatro paredes. Desde que a minha liberdade e privacidade não
interfira com a do meu vizinho, o sentir-se incomodado tem mais a ver com a
falta de respeito e, com certeza, com ideias pré concebidas que, normalmente,
estão longe de ser verdade.
Não adianta virem bater-me na cabeça com uma Bíblia na mão. Isso mais
parece exorcismo e, como disse acima, é tal e qual um arrogante que se diz
humilde.
Quando se questionam certas situações que põem em causa a ética, há que
não menosprezar outras situações quando se diz que Deus não comete erros. Ora,
vejamos. Deus não comete erros. No entanto, há bebés, gémeos, que nascem
ligados pelo tronco ou pela cabeça. Bem, Deus não comete erros, e deixar que a
Ciência interfira na obra de Deus é o mesmo que dizer que Deus comete erros.
Por isso, nem vale a pena tentar consertar aquilo que Deus não errou! Se uma das
vidas estiver em risco, ou ambas, deixem-nas morrer. Afinal de contas, Deus não
comete erros e, se for da vontade de Deus, eles sobreviverão, embora, por muita
fé que eu tenha, não me pareça que, tendo sobrevivido, Deus as vá separar!
Havendo possibilidade de um deles sobreviver, ou ambos, mas com intervenção
cirúrgica, e sendo impossível fazê-lo, porque Deus não comete erros,
pergunto-me quem será tido por responsável, caso não sobrevivam!
Mas, vamos imaginar que esses bebés têm condições para viverem ligados.
Bem, Deus não comete erros e, ao que parece, a qualidade de vida é uma questão
menor, comparada com a questão física, que, ironicamente, é base para todos os
equívocos da aparência! Ora, sendo seres humanos “normais”, que todos o dirão
para que não se sintam diferentes dos demais, penso que é de esperar que essas
crianças, tornando-se adolescentes e, depois, adultas, terão que partilhar
cama, refeições, idas à casa-de-banho (não me perguntem como seria, caso fossem
de dois sexos diferentes em casas-de-banho públicas!), idas a concertos versus
estar em casa, etc. E, já que são pessoas normais, também é de esperar que
ambas, ou, pelo menos, uma delas, se apaixone. Enquanto todos os outros, que
dizem que esses dois seres são iguais a eles, porque razão uns têm direito a
uma dignidade e a serem felizes e outros não? Será que, neste caso, deverão
partilhar namorados e namoradas e, quem sabe, ter sexo na mesma cama a quatro?
Ou seremos nós capazes de lhes impingir o não-amor e a não-realização só para
que não infrinjam os tais “mandamentos de Deus”? Sim, porque Deus não comete
erros e acender a luz no fundo do túnel para estas pessoas é impensável, porque
é o mesmo que dizer que Deus é incapaz.
A vivência neste Planeta também nos tem permitido ver que há pessoas que
nascem com dois sexos, os tais hermafroditas. Bem, mais uma vez, Deus não
comete erros, e Ele criou Homem e Mulher à sua imagem. No entanto, devido a
alguma aberração da Natureza, há seres humanos (ou serão outra coisa?) que
nascem com duas genitálias, pelo que se torna difícil definir. Mas, como Deus
criou Homem e Mulher, até à bem pouco tempo, nestas situações, os pais podiam
decidir qual o sexo da criança. Na maioria dos casos, a genitália que
aparentasse ser a mais prevalecente, seria a escolhida. Provavelmente, nesta
situação, muitos Cristãos abririam uma excepção ao “Deus não comete erros” e,
já que Deus criou Homem e Mulher à sua imagem, a Ciência pode interferir.
Engraçado como, para estas coisas, os pais tenham poder de decidir se uma criança
é menino ou menina, mas no caso da salvação pelo Baptismo, eles não tenham esse
poder de decisão! Sim, porque hoje em dia, no caso do hermafroditismo, já se
permite que a criança, uma vez adolescente ou adulta, decida a qual dos sexos
pertence. Ora, quando ainda os pais decidiam o sexo do seu filho, houve casos
em que o género do cérebro e o sexo físico não combinavam, levando estas
pessoas à loucura, depressão e má qualidade de vida por não se identificarem
com o género físico.
Deus não comete erros! E, no entanto, milhares de crianças continuam a
nascer e a morrer à fome em África. Se Deus não comete erros, sabendo Ele que é
incrivelmente difícil sobreviver em África, porque continua Ele a permitir que
nasçam crianças lá?
Deus não comete erros. E, no entanto, continuam a nascer crianças
deficientes que alteram por completo o sistema familiar de um grupo, para que
esse novo ser se possa adaptar e ser o mais autónomo possível. Espera! Deus não
comete erros. Portanto, todas as soluções criadas pela Ciência não são para ser
aplicadas.
Deus não comete erros. Há uma séria de transformações genéticas que
reproduzem alterações no desenvolvimento. A acção do ser humano tem
providenciado isso, o que me leva a crer que, afinal, a culpa é nossa.
Continuam a nascer crianças com doenças congénitas, outras com sérios
obstáculos na interacção com os seus semelhantes, etc. Basicamente, só quem
está lá é que sabe. Não podemos julgar a forma como uma pessoa tenta resolver
uma situação, muito menos pôr em causa a sua fé se ela, na sua honestidade,
tenta fazer o seu melhor, enquanto outros pregam, e até praguejam, em nome Deus
e de todos os santos possíveis e imaginários para que essa pessoa se redima. Às
tantas, ela é a única pecadora e não sabe! Mas, espera. Deus não comete erros.
O ser humano os comete. Ah, pois! Mas Deus escreve recto sobre linhas tortas!
E, então? Anda o cão atrás da cauda, pois é!
E esqueçam essa ideia de paninhos quentes de quando dizem que amam o
pecador, mas odeiam o pecado. Quem és tu, pecador, para me dizeres a mim,
pecador, que me amas, mas odeias o meu pecado? Serão os teus pecados menores
que os do teu próximo? Não será ele responsável pelos seus pecados e tu pelos
teus? Porque é que, em termos humanos, tu que nasceste “normal”, que dizes
tratar o outro por “igual”, tens o direito de te apaixonares, amares, casares,
teres filhos e morrer rodeado da família que tu criaste? (Sempre se pode
sonhar!) Ou deverá o outro negar-se, fazer de conta que ama quem escolheu para
formar família, achando que isso não irá afectar os demais, mesmo que eles não
o saibam? Terão eles culpa do resultado da sua negação? Ou deverá ele negar que
sente afecto por alguém, negar a vontade de constituir família, enquanto outros
têm o conforto do seu lar? Espera! É perversão? É perversão amar? É muito fácil
dizer ao outro que se negue a si mesmo e que carregue a sua cruz. Jesus
disse-o, mas quem és tu para o dizeres ao teu próximo? Não terás tu que te
negar a ti mesmo e carregar a tua própria cruz? Porventura, te compadecerias do
teu próximo e negarias a tua família, casa e lar para que ele não seguisse esta
caminhada sozinho? Se ser-se quem é for pecado, hipocrisia não o será também?
Mas, se ambos são pecados, e ele não pode deixar de ser um sem que se torne no
outro, não poderá ele decidir com qual deles conviverá melhor para o resto dos
seus dias? Porque a consciência é dele, e a sua fé só a ele lhe diz respeito e
a Deus. Caso contrário, a única solução é a morte, se é que a negação já não é,
por si só, a anulação do próprio. ”